Entrevista: Revista Backstage – Dezembro de 2003

Por: Maria Fortuna
Revista Backstage

Embora nenhum membro de sua família tenha seguido a profissão, a música sempre esteve presente na vida de Rui Motta. Desde pequeno ouvia por tabela os discos de Waldir Calmon e Nelson Gonçalves, pois seu pai era um fã incondicional do cantor. “Os arranjos eram muito bons e eu já me ligava no som geral da música”. O avô também era referência para o ouvido e, por intermédio dele, Rui conheceu os boleros de Lutcho Gattica. “Essas são as lembranças mais remotas que me despertaram interesse pela música”, conta.

Aos treze anos Rui ganhou um tarol (pequena caixa que se toca com duas baquetas) de Natal e este foi o pontapé inicial para que ele mergulhasse de vez no universo da música, passando de ouvinte a um profissional, mas nunca abandonando o hábito de escutar tudo que tivesse oportunidade. Chegou a ensaiar na banda do Liceu Nilo Peçanha, mas o grande divisor de águas em sua vida foi quando ouviu pela primeira vez a música She loves you, dos Beatles. “Me transformei num maníaco musical, ouvindo tudo que era possível. O curioso é que anteriormente eu já tinha ouvido Paul Anka, Elvis Presley e todo esse pessoal embrionário do rock que, na verdade, não me disse muita coisa. Gostava também de uma banda de São Paulo chamada The Jordans”.

A opção pela bateria foi certeira, pois o instrumento sempre monopolizou a atenção de Rui. Prova disso é que uma das principais dificuldades que ele teve que vencer foi ouvir o som da música por completo. “No início, eu me concentrava demais nela”, revela. Mas a paixão pelas baquetas nunca foi empecilho para a admiração e até para o uso de outros instrumentos. “Gosto de contrabaixo e piano, que cheguei a estudar durante algum tempo e uso para compor e fazer os arranjos”.

O apoio e o incentivo da família foram fundamentais no início daquilo que seria sua futura carreira musical. E haja compreensão, pois o garoto abandonou o estudo para seguir uma das carreiras mais incertas desta vida. “Meu pai chegou a ser empresário da minha segunda banda, Os Corujas, que tocava toda semana em bailes por todo o estado do Rio, levando inclusive minha mãe a tiracolo. Sou muito grato a eles por tudo que fizeram para satisfazer a vontade ferrenha de um garoto de dezoito anos que abandonou os estudos no meio de uma prova final do segundo grau para seguir a vida tocando bateria”. Pra compensar e provar que estava certo, quatro anos depois Rui já estava tocando numa das maiores bandas do país, os Mutantes, e cedo aprendeu a lidar com obrigações profissionais. A partir daí, sua carreira deslanchou e sua vida era só trabalho. As lembranças desta época são as melhores possíveis. “Tenho um temperamento simples e isso sempre me facilitou o acesso às pessoas. Costumo manter um bom padrão de relacionamento e isso me leva a ter uma boa lembrança da grande maioria dos projetos em que me envolvi”.

Formação

A prática sempre foi a escola de Rui. A primeira bateria com a qual tomou contato foi o seu próprio kit. Descobriu por sua conta que sabia tocar algumas batidas de rock e até um sambinha, sem nunca ter estudado. “Simplesmente porque fazia isso mentalmente e também tocava no sofá lá de casa”, conta. Sua grande curiosidade em ouvir de tudo foi outra fonte importante de aprendizado. “A audição me dava a possibilidade de satisfazer a grande vontade que eu tinha de entender todos os detalhes da música e eu realizava isso no plano puramente mental, por meio da repetição massiva do disco”, diz ele, acrescentando que a audição supria, em parte, a falta de estudo formal e serviu como ponte para desenvolver o gosto pelos arranjos. “Não só o da bateria como o de cada instrumento e o da música por inteiro. Ficava também ligado no timbramento dos instrumentos e na dinâmica. Tinha também toda a questão técnica dos modelos dos instrumentos e da mixagem, que me interessavam”, comenta ele, que toca numa Concept, da RMV, e está mais do que satisfeito com ela. Houve ainda a grande “escola” adquirida nos bailes (literalmente) da vida. “Pude colocar em prática a capacidade auditiva recém-adquirida para identificar e reproduzir os arranjos ao vivo. Esse período foi importante não só pelo lado eclético, pois tinha que tocar vários estilos e ritmos diferentes, mas também pela própria disciplina de tocar em conjunto”.

Além das próprias circunstâncias da vida, o fato de ser autoditada também foi uma imposição da estrutura da época, pois, segundo Rui, não havia escolas nem professores de bateria. “Pelo menos, eu não sabia onde eles estavam. Métodos de bateria disponíveis no Brasil eram pouquíssimos”. Graças a um amigo que foi estudar lá, teve acesso a livros e apostilas do curso de bateria ministrado na Berklee.

Mas, mesmo sem um aprendizado formal, o estudo sempre permeou a carreira de Rui e foi a partir das aulas informais de divisão rítmica que teve com Luciano Alves que o músico reafirmou sua paixão pela bateria. “Fui mergulhando naquele mundo que se abria e comecei a estudar bateria paralelamente ao piano. Dividia meu tempo entre os dois instrumentos e cheguei a fica quatorze horas por dia, estudando e praticando. O gosto pela bateria foi aumentando e virou uma fissura, foi quando parei de praticar o piano porque precisava do tempo integral para a bateria”. Rui também teve aulas de harmonia com Izidoro Kutno. Livros de teoria musical funcionavam como fontes de consulta. “Minha formação sempre se realizou informalmente e tem como espinha dorsal a minha sede insaciável pelo estudo, que continua até hoje a pleno vapor”.

Cursos e livros

Durante muitos anos, Rui Motta testou e desenvolveu um programa completo de um curso individual de bateria, reconhecido pelo Ministério da Cultura. “Me concentrei em organizá-lo dentro de um padrão que habilite profissionalmente o baterista, explica. O curso é dividido em quatro níveis, as apostilas são numeradas, pode-se acompanhar a progressão do programa dentro de uma abordagem personalizada, pois as aulas são individuais. “Todo o conteúdo do programa é apoiado por áudio por meio dos CDs com as vinhetas, músicas e exercícios para serem acompanhados tipo play along. Mas o que eu posso dizer de mais objetivo sobre esse programa é que não existe nenhuma possibilidade de o baterista não atingir sua meta, a não ser que não faça aquilo que o curso prescreve”, garante.

O baterista também foi pioneiro ao publicar livros com métodos de bateria e diz que foi puramente por acaso que se aventurou na escrita. “Em 1992, estava com muita vontade de praticar, mas não tinha nenhum material disponível a não ser os velhos métodos que já tinha escutado. Comecei então a escrever alguns exercícios que eu gostaria de encontrar num livro e não parei mais. Em quarenta dias escrevi tanto que a idéia da publicação veio naturalmente e então comecei a revisar aquele material com essa intenção. Jamais tive uma idéia preconcebida de escrever um método”. A continuidade dessa “brincadeira” foi conseqüência de seu interesse por todos os aspectos envolvidos quando se toca bateria. “Mergulhei de cabeça nessas pesquisas. Não se trata apenas de inventar alguns exercícios desse ou daquele assunto, você tem que entender o estudo da execução da bateria como um sistema integrado que se compõe de muitos tópicos interligados, mas que devem ser considerados individualmente”. Segundo Rui, é preciso descobrir as leis que regem ritmicamente o sistema motor para poder praticar e desenvolver com eficiência esse ou aquele setor. “O que eu procuro fazer é entender essas leis motoras para poder prescrever os exercícios realmente eficientes, ou seja, aqueles que são os mais bem sucedidos na difícil tarefa de elevar o padrão rítmico do baterista. O corpo humano é como chiclete, você pode moldá-lo a seu bel prazer pela repetição massiva de qualquer movimento. Isso é o bê-á-bá da coisa, mas o que me interessa é preparar o corpo para atender a todas as demandas rítmicas que se pode imaginar e sair tocando, sem precisar fazer essa ou aquela adaptação no sentido de facilitar a coisa toda, porque se você está realmente preparado não precisa facilitar nada, apenas sai tocando naturalmente como se fosse fácil”.

Dicas

Para os que estão começando a se aventurar pela profissão, nada melhor do que algumas sugestões de músicos experientes para auxiliar no longo caminho que têm a trilhar. E Rui as tem na ponta da língua. “Estudar, se informar, ouvir, praticar, pesquisar, priorizar o trabalho musical ao invés da divulgação e, se possível, fazer música com melodia e harmonia, porque só com o ritmo já tem muita gente fazendo”, enumera. Para os baterista de plantão, as dicas são mais específicas. “Imaginar-se um maestro de uma banda composta de quatro músicos: os pés e as mãos. Esse é o caminho mais rápido para desenvolver a coordenação e a independência motora rítmica”. Estar sempre em dia com as novidades (desde os artistas que pintam no mercado até equipamentos que são lançados) também é fundamental para manter-se sempre atualizado.

Entrevista de Maria Fortuna publicada na revista Backstage em dezembro de 2003.

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